Como a telemedicina aproximou a USP e a Unifesp da Amazônia
Cada qual sabe onde o sapato aperta. Nesse sentido, buscam-se soluções para resolver o problema. O ICB5, base permanente do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP na distante Monte Negro, há 3.000 quilômetros (Km) da capital paulista e 250 km da capital rondoniense, tem que ser inventiva para “tirar as pedras do sapato”.Quando iniciamos nossas atividades em Monte Negro, há 20 anos, a maioria dos pacientes buscava atendimento para doenças infecto-parasitárias (DIP) como malária, hanseníase, micoses sistêmicas, hepatites, picadas de cobra, entre outros. O tempo passou, a população brasileira e local envelheceu. Nosso paciente jovem com alguma “doença tropical” passou a apresentar, amiúde, um rol de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). A mortalidade por DCNT em Monte Negro saltou nos últimos 10 anos de 22% para mais 50%!! Assim sendo, começamos inicialmente a atender doenças oftalmológicas. Não há oftalmologista pelo SUS num raio de 250 km. Havia uma fila de 145 pacientes para passar em consulta com o oftalmologista na capital: 3 anos de espera. Nessa ocasião, a inovação foi buscar ajuda com os velhos amigos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mais especificamente com o generoso professor Rubens Belfort Jr. Pessoalmente, viajamos para São Paulo e passamos por 1 semana de treinamento no Departamento de Oftalmologia da Unifesp, com apoio do IPEPO (Instituto da Visão).
Além da capacitação, o IPEPO doou para a USP um retinógrafo digital que permite fotografar os olhos dos pacientes em 3 eixos diferentes e enviar as imagens para a Unifesp para a avaliação, emissão de laudo e orientação do especialista. Doou ainda 1.000 óculos para presbiopia, que são distribuídos aos pacientes carentes. Em paralelo, com ajuda do professor Jackson Bittencourt (então diretor geral do ICB), conseguimos uma série de equipamentos oftalmológicos apreendidos e doados pela Receita Federal.
Hoje, Monte Negro é o único pequeno município de Rondônia com serviço público de oftalmologia. Não há mais filas para atendimento oftalmológico e temos atendido os municípios vizinhos. Iniciaremos em outubro deste 2018 , em parceria com a Unifesp, um amplo estudo de corte para verificação de doenças oculares em escolares do município e um mutirão para realização, in loco, de cirurgias para catarata e ptirígeo (“pele crescida no olho”).
Havia uma outra “pedra” a ser retirada: a abordagem das doenças cardiovasculares. Sessenta e cinco por cento dos idosos montenegrinos têm hipertensão arterial sistêmica (HAS). O laboratório de análises clínicas do ICB5/USP dá conta de realizar os exames básicos. Não é um problema. O aparelho de RX (para avaliação do tamanho do coração), pertencente à Prefeitura de Monte Negro, tem funcionamento irregular. Não há eletrocardiograma (ECG), exame fundamental para abordagem do paciente nessas condições.
Para retirar essa “pedra” recebemos um eletrocardiógrafo digital, doação de uma empresa local que apoia a USP. Esse aparelho realiza o eletrocardiograma e armazena imagens do mesmo. Após uma breve apreciação local, enviamos as imagens via internet para o Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) aos cuidados dos médicos Rosângela Gundim e Carlos Pastore. No prazo de um dia o serviço de telemedicina do Incor nos envia os ECGs laudados. Veja bem: um amazônida sendo avaliado por um profissional do Incor/FMUSP, excelência em cardiologia, há 3000 km de distância. Uma “pedra a menos”.
Outro ponto que nos incomoda é a alta prevalência de hanseníase (lepra/MH). A região Norte é responsável por quase 40% dos casos novos de MH no Brasil. Trata-se de uma doença silenciosa. Tem- se que estar atento durante a consulta para identificar a doença. O Ministério da Saúde recomenda que além de diagnosticar o caso e instituir o tratamento imediatamente, realize-se a investigação de pessoas que convivem com o paciente para verificarem se estão doentes também. Baseado em informações da literatura que apontavam para um raio de 10 metros para risco de transmissão da doença, o ICB5/USP resolveu inovar e examinar, além dos moradores que convivem com o paciente doente, os vizinhos do mesmo, pois encontram-se em um raio de 10 metros! Realizamos um estudo controlado examinando vizinhos de doentes e de não-doentes e, para nossa surpresa: nos casos de controle não encontramos novos casos de MH e nos vizinhos dos doentes identificamos 7 novos casos! Um incremento de casos novos da ordem de 17,5% no município. Pessoas que estavam doentes, eventualmente transmitindo a doença e “escondidos” do sistema de saúde. Até 25% dos pacientes com MH desenvolvem incapacidades físicas permanentes.
O diagnóstico de MH é difícil. Não existe nem um “padrão-ouro” para seu diagnóstico. Além do exame físico minucioso do paciente, o exame anatomopatológico de pele é o exame mais eficaz. Neste sentido, a equipe do professor Paulo Saldiva (FMUSP) veio em nosso socorro e temos à disposição esse valioso instrumento para complementação e confirmação do diagnóstico de MH. Fragmentos de tecido dos casos suspeitos são colhidos no Ambulatório de Pequenas Cirurgias, todas as quartas-feiras e enviadas por SEDEX para o professor. Em 30 dias temos a resposta! Não há este serviço em Rondônia.
Muito embora o ICB5/USP não seja plenamente assistencialista, entendemos que os serviços de saúde têm que se amoldar às necessidades da população. Imagine se o ICB5/USP estivesse ainda atendendo apenas as DIP? Estaríamos atendendo menos de 20% da demanda… Em tempos de crise, os profissionais de saúde têm que ser resilientes. Há que ser criativo, inovador e buscar articulações com parceiros para o enfrentamento dos problemas. Há, igualmente, que se utilizar da tecnologia. Neste sentido, com apoio da USP e seus parceiros, aliado à tecnologia, estamos enfrentando modestamente os desafios.
Fonte: Jornal da USP